Narrando casos: A história de Maria do Céu.
- Karen Dias Jones
- 28 de abr. de 2020
- 10 min de leitura
Este relato de caso é real e foi apresentado como trabalho final do curso “Oficinas Clínicas sobre o cuidado: Narrando Casos e (RE) Construindo sentidos para o trabalho em saúde” da ENSP - Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz - Rio de Janeiro.
* Todos os nomes usados nessa narrativa são fictícios e foram retirados detalhes que pudessem comprometer a privacidade da paciente.
O objectivo da produção desse trabalho em específico foi de narrar, publicar e trazer à tona casos de pacientes invisíveis na sociedade. Tornando-os assim, protagonistas de sua própria história e reafirmando a importância das suas existências. Um protagonista nunca deixa de existir, ele é eternizado no papel e retoma fôlego a cada novo leitor.
Estela, você jamais será esquecida.
*CAPS - Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e Drogas.

Ainda bem que calcei o tênis hoje, não imaginava que teria que correr logo cedo. Estava alguns meses correndo na esteira e veio muito a calhar esse preparo físico. Os pés dela descalços e, inalcançáveis, me deixavam para trás com folga. Ela corria muito, corria magoada, corria chorosa, corria com dor. Eu a entendi e, ignorando os pedidos de todos para deixá-la ir, me pus a correr atrás. Nunca imaginei que em minha profissão de psicóloga eu iria para territórios tão escassos atender vidas tão feridas.
Maria do Céu foi jogada no lixo após nascer. Alguém na rua ouviu seu choro baixinho e a tirou de lá. Foi levada para um abrigo de crianças, onde foi batizada com esse nome. Somente aos 7 anos, Maria, que passou a ser chamada de Estela, foi adotada. Aos 11, fugiu da nova e primeira casa após sua mãe adotiva ter abandonado tudo, deixando-a com seu pai, que passou a abusá-la. Já ouvi versões dessa história que a culpabilizam por ter “seduzido seu pai e traído a confiança de sua mãe” SIC.
Nas ruas, Estela começou a usar crack e sob efeito, caiu do alto de um viaduto vindo a fraturar a perna. Passou a se prostituir para pagar o vício, dormia ora em abrigos, ora em casa de homens mais velhos, que “cuidavam” dela.
Estela é muito bonita e sempre chamou a atenção de todos. É negra com cabelos cacheados, muito emagrecida e tem um dos rostos mais belos que já vi.
Após fazer 16 anos, um desses homens, os chamados por ela de “velhos”, a trocou pela amiga mais nova, levando novamente Estela para um abrigo público voltado para adolescentes. Este mesmo abrigo a direcionou para ser atendida em um CAPSAd – Álcool e Drogas no qual eu trabalhava, bem perto de uma cracolândia do Rio de Janeiro. Seu primeiro atendimento se deu porque Estela queria transporte para voltar pro abrigo, pois havia saído e perdido sua vaga novamente. Ela era conhecida como a adolescente rebelde que “surtava” na instituição, saía para fazer uso e retornava.
Esse primeiro atendimento foi muito difícil para mim. Estela gritava comigo, revirava os olhos adolescentes com desprezo. Levou uma hora para conseguir me aceitar e finalmente contar superficialmente sua história.
Um detalhe importante: Tudo que Estela usa é rosa (às vezes vermelho), ela adora bonecas e tem uma coleção delas (mais de dez), que achou no lixo. Interessante pensar nas bonecas resgatadas/salvas como uma alusão a própria vida de Estela, aquela que foi retirada do lixo. Estela é muito regredida e passa facilmente por uma menina de 15 anos no máximo, seu tom de voz, o arco de cabelo, as brincadeiras, as roupas...
Tudo é do universo infantil. Estela hoje tem 19 anos. (2017).
Nesse atendimento Estela me disse chorando que queria muito ter uma mãe, mas que agora que ela havia tido um bebê, ninguém mais a adotaria. Disse que na rua ao se prostituir tinha medo de que as “pessoas normais” a vissem. Perguntei quem seriam essas pessoas e Estela respondeu que “são as pessoas que têm tudo na vida.” Novamente questionei o que seria “tudo na vida”, e ela convicta e perplexa como se eu não entendesse algo tão óbvio, revirou os olhos e afirmou: “São as pessoas que tem mãe, pai e casa.”
Estela teve sua primeira filha antes desse atendimento e o bebê foi encaminhado para um abrigo vindo a ser acompanhado pelo Ministério Público e pelo CAPS que eu trabalhava.
A partir desse atendimento passei a ser a referência de Estela junto com uma assistente social, (Referência significa que eu seria a pessoa que a atenderia a partir de então). Estela estava diagnosticada com tuberculose multirresistente e se negava a aderir ao tratamento. A equipe do abrigo constantemente me ligava por não saber como agir, que Estela ao querer sair para as ruas quebrava janelas, batia em funcionários e pulava o muro. Em uma dessas vezes eu tentei acalmá-la por telefone, mas foi inútil.
Percebendo que ela não retornaria ao atendimento, me prontifiquei a visitá-la. A encontrei bem no meio de duas pilhas enormes de roupas: Voavam saias, blusas, sutiãs e meias. Estela no meio delas nem me olhou, só falava que estava procurando roupas para sair e as jogava irritada como quem procurava agulha em um palheiro.
As roupas de doações chegam em sacos enormes no abrigo e é necessário tirar dos sacos para escolher quais que cabem.
Estela fazia tudo de forma muito desorganizada. Fingia que não me ouvia e em alguns momentos me empurrava para que saísse de sua frente. Toda a equipe me olhava como se eu tivesse falhado, como se Estela fosse impossível, pois até a psicóloga não conseguia acessá-la. Ela estava com febre, calafrios e tosses constantes. Nada disso a parava.
Eu estava cansada e após horas de indiferença, perguntei a ela o que faria se sua filha estivesse doente e se recusasse a ir ao médico. Estela pela primeira vez me olhou, olhou de verdade, colocou o dedo em riste e respondeu: “Ela não tem escolha, criança doente não tem escolha e ela iria mesmo sem vontade.” Perguntei como ela falaria com a criança e Estela respondeu: “Bote suas roupas agora que você vai de qualquer jeito, pode se arrumar!” Eu, após essa deixa irresistível, afirmei no mesmo tom: “Bote suas roupas agora que você irá ao hospital de qualquer jeito, pode ir logo se arrumar!”
Estela me olhou e perguntou: “Antes você pode me dar um beijo na testa?” – Respondi que sim. E ela prontamente se levantou e foi tomar banho, diante de uma equipe perplexa, que assistia Estela se arrumar mesmo chateada para ir ao hospital. Ela, aproveitando o momento, pediu também um hambúrguer.
Já no hospital bastante impaciente, não conseguiu esperar pelo atendimento, foi para a porta e se jogou no chão dizendo que o “chão estava quentinho e ela estava com frio”. As pessoas passavam na calçada assustadas vendo-a no chão, e eu tentava acenar e dizer que estava tudo bem. Finalmente ela se levantou e correu até as lojas próximas, achou um local de lanches e pediu o seu tão desejado hambúrguer. Comeu em frente ao hospital, deixando batatas e pão cair no chão. Me perguntou quanto foi e quando soube ficou revoltada: “Como podia ser tão caro se nem tinha ovo?”
Estela antes de usar crack era obesa, emagreceu tanto com o uso que possui excesso de pele. Estela come compulsivamente e todas as vezes que me vê, quer comer. Após algum tempo de acompanhamento, percebi que só comendo Estela conseguia ficar calma e ouvir, só assim conseguia se concentrar e organizar seus pensamentos. Então, é interessante que ao me ver, associe com a comida, com a escuta e uma possível reflexão.
Essa foi a primeira de muitas idas ao hospital com Estela, perdi a conta de quantas vezes estive com ela em exames, internações e visitas. Já saí as 23h da Barra (bairro distante), após horas de conversas com a gerência a fim de conseguir interná-la. No dia seguinte Estela tentava fugir, a equipe já a achou a tentar entrar no BRT (transporte público), e eu novamente, retornava para conversar com ela.
Após 1 ano de muitas reuniões e conversas com o Ministério Público para trabalhar o caso de Estela e falarmos da guarda de sua bebê, finalmente a acompanhei na audiência. Estela antes de entrar na sala tentou pegar meu celular a força, mexeu nas coisas da sala do tribunal e finalmente se trancou em uma sala ao lado repleta de brinquedos. Pedi para ela sair, mas não saiu. Na sala de audiência tudo piorou, eles queriam ouvir da boca de Estela que ela não tinha condições de ficar com a guarda e isso foi doído, dizer para desconhecidos que a julgavam que a primeira familiar de sangue que ela conhecia não poderia estar na sua vida. Foi muito custoso, ela chorou muito e eu fiquei me perguntando o porquê de tanta rigidez (foram muito agressivos), com quem nunca teve facilidade alguma na vida. A criança foi encaminhada para a adoção. Ela quis comer após a saída da audiência.
Estela passou a ficar na ‘Cracolândia’ (cenas de uso de crack), e começou a namorar um rapaz de lá. Eu passei a visitá-la e levar a medicação de tuberculose e preservativos semanalmente. Um dia, Estela estava dormindo com o novo namorado. Acordei os dois, (acordar Estela passou a ser rotina, ela sempre acordava mal humorada), e após suas inúmeras reclamações, tomou a medicação, mas vomitou. Estela disse que queria falar comigo e me pediu baixinho para fazer teste de gravidez com ela.
Fomos para o CAPS* e eu mesma fiz o teste rápido com ela. Na primeira vez o teste deu positivo, e eu, implácida e perplexa, afirmei que seria importante fazer o teste novamente. O segundo também deu positivo. Ainda insistente e, claramente em negação, sugeri fazer outro. O terceiro também deu positivo. Estela ficou confusa, ela tinha me dito que queria morrer. “Para que viver se eu não tenho mãe? Eu não tenho ninguém na vida.”
É importante ressaltar que Estela possuía uma maturidade "regredida", ou seja, ela não amadurecia no mesmo ritmo que a maior parte das pessoas.
Possuía ímpetos ora infantis e rebeldes, ora suicidas, colocando-se o tempo todo em risco.
Novamente sua gravidez virou caso do Ministério Público e encaminhamos Estela para o pré- natal. Tivemos a idéia de procurar a família do namorado de Estela para conversamos sobre a possibilidade de ajuda na guarda da criança. Antes mesmo dessa conversa, o namorado de Estela foi preso após passar um tempo desaparecido. Na conversa com os sogros de Estela vimos, enfim, uma luz no final do túnel. A família muito humilde, disse que iria auxiliar Estela e queriam estar próximos a neta. Estela passou a morar com eles. Toda a equipe ficou muito feliz. Finalmente Estela teria casa, proteção e poderia estar com sua filha tendo o suporte de uma estrutura minimamente organizada.
Após uma semana começaram as ligações. Seu sogro ligava dizendo que estava tendo dificuldades com ela. Fui com a assistente social realizar visita para ver o que estava acontecendo. A casa era em uma comunidade (periferias, favelas), e ficamos felizes em ver uma Clínica da Família bem próxima de sua casa. Estela já estava com a gravidez visível e, imediatamente ao me ver, pegou-me pela mão e nos direcionou ao "mercadinho" para comprar biscoitos. Voltamos para casa e encontramos com seu sogro. Estela mastigava os biscoitos com pressa, seus dedos sujos de gordura e sal.
Seu sogro relatou que ela havia acabado de almoçar, que ele se distraiu e ela ainda comeu um panetone inteiro sozinha. Estela mastigava seu biscoito e disse que só estava com fome.
Eu e a equipe achávamos que os conflitos iriam se dissipar com o tempo e com o nosso manejo, mas não foi bem assim. Tentamos benefícios e entregas de cestas básicas, mas não foi o suficiente. Estela acabou voltando para a "Cracolândia" e ganhou um “barraco” (casa feita com restos de madeira), na linha do trem. Foi ter seu filho em uma maternidade próxima. Visitei a bebê primeiro e depois conseguimos visitar todos juntos, com o sogro também. Pude ver uma das cenas mais lindas dessa história, a bebê ainda dentro da incubadora, sorriu imediatamente a ser chamada pelo avô. Ele prometeu que cuidaria dela e que ela era linda. A bebê sorria de um jeito encantador. Todos choraram. Ele pediu a guarda da bebê e foi prontamente atendido.
Ao correr atrás de Estela eu nunca imaginei tudo que se desenrolaria, toda a história que eu teria acesso através de sua vivência ao longo desses dois anos e meio. Ela correu porque no segundo atendimento pediram que ela viesse com a máscara N95 por estar bacilífera, (ainda transmitindo o bacilo de tuberculose). Estela se recusou a usar a máscara, relatando ter muita vergonha. Começou a chorar dizendo que tinha vindo de longe para me ver e que eu estava com nojo dela, ficou muito magoada e disse que iria embora. Saiu da sala de atendimento e se dirigiu-se até a van do abrigo, mas mudou de idéia e resolveu correr em direção de uma avenida muito movimentada. Eu tentei fazer com que ela parasse de correr, mas não tinha jeito. Eu fui atrás.
Ao escrever esse relato me dei conta de algumas coisas: De que ao falar de Estela eu falava muito sobre mim e do meu sentimento ao atendê-la. Estela sempre demandou um vínculo aproximado para que se fosse possível cuidar dela. Nunca aceitou relações protocolares. Nessa vinculação eu vi muito do que ela viveu, vive e viverá. Seu futuro foi e sempre será incerto.
E senti raiva. Senti raiva da minha impotência diante de uma menina que o primeiro local que conheceu foi à lata de lixo.
Senti raiva ao abrir o jornal e ver matérias como “mendiga gata resgatada da cracolândia”, os auxiliados na rua pela mídia são sempre os de pele branca e olhos claros. A comoção pública tratava como se não houvessem outros sujeitos com histórias muito piores por lá. "Coincidentemente" os não salvos são pretos.
Senti raiva porque Estela não teve nenhuma autonomia diante de sua vida, tudo que aprendeu o fez em abrigos, sentindo amor e vínculos profundos por funcionários dos locais por onde passou, sendo responsabilizada e culpabilizada pelos seus erros e imaturidade infantis. Abandonada ao nascer, abandonada pela família adotiva, abandonada pela família do pai da criança.
Hoje sei que a minha corrida atrás de Estela não foi uma corrida só por ela, eu também corria por mim, eu corria pela minha dor, corria para tentar agir o máximo possível, pois me reconhecia impotente diante de sua invisibilidade nas ruas.
Eu a havia visto, e por vê-la, não pude deixar que ela desaparecesse, não poderia de modo algum fazer o que o Estado fez: Agir como se ela não existisse.
Finalmente a alcancei com a ajuda de um outro paciente, Estela parou sorrindo e sentou. Concordou em voltar conosco e caminhamos juntos, ela agia como se nada tivesse acontecido. Estava sorrindo e brincando novamente, satisfeita.
Aparentemente eu havia passado em seu teste.
* Um ano após a escrita desse caso, soube pela equipe que Estela faleceu.
Karen Jones
Psicóloga
CRP-RJ 05-46558
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